Se não fossem os danos, eu não seria eu

agosto 24, 2019

Ps.: esse texto foi escrito há alguns anos. O encontrei hoje por acaso e concluí que valeria a pena repostá-lo aqui. Quero apontar que não concordo com os pontos de vista pessoais da autora da canção que, ao escrever, usei como base para o texto. Não nego que houve época em que encontrava deleite em suas melodias, mas hoje já não mais consumo seu material. Boa leitura!


Se não fossem as minhas malas cheias de memórias
Ou aquela história que faz mais de um ano
Não fossem os danos
Não seria eu

Canto “Capitão Gancho” muitas vezes como é suposta ser cantada: despreocupada e livremente, sem compromisso com a filosofia escondida nas entrelinhas. Outras poucas vezes, no entanto, me vejo perdida nas palavras tão simples que a compõem, a ser explicado unicamente pela minha relação com aquilo que, despretensiosamente, Clarice canta…

Carrego tantas cicatrizes que mal posso contar. Minha pele tem camadas rasgadas que, ao se abrirem, nos permitem contemplar outras mais camadas rasgadas. Feridas antigas, recentes, decorrentes. Perdas, quedas, socos nas paredes de tijolos e nas paredes do estômago também.

Cometo, às vezes, o erro de, ao ler sobre os grandes santos, chegar a quase invejar, por um ou dois segundos, a infância e a juventude que tiveram. Queria eu ter sido preservada de tantos contatos ruins, de tanta influência ao pecado e de tantas más raízes que cultivei nesses meus anos. Queria poder, também, ter amado Jesus desde que era pequenina. Ou, como alguns deles, nunca ter cometido pecado mortal. Ou ter aprendido sobre a vida como o instante em que temos para nos despojarmos de nós mesmos e lançarmos voo ao bom Deus, que nos espera. No entanto, ao me deparar com a minha vida até então conturbada, vejo que o oposto disso foi o que tomou lugar, e hoje sofro para arrancar essas mesmas raízes que há tanto tempo se fazem presentes. Quase não percebo, às vezes, o tamanho da minha ingratidão por desejar ter tido os anos de outro alguém, e ignorar a história singular de amor de Deus por mim.

Entendo, logo, que não serei santa pela história de Teresinha, Gema ou Chiara. Não há homem na terra que tenha escolhido todos os caminhos que seguiria: aceitando-os ou não, o futuro, enquanto não eterno, é incerto. E está tudo bem, porque é justamente através das nossas lutas pessoais que atingiremos o ápice que nossas vidas podem atingir. Se há motivos para agradecer, agradeçamos; se não, agradeçamos. Não é que faltem motivos, mas nós, incapazes e desesperados como somos, não os enxergamos agora. Deus permite as tempestades para que, aprendendo a velejar com amor, avancemos em grau de perfeição. Consiste, então, a santidade em aceitar as minhas tempestades, e me alegrar por serem, na verdade, um presente. Presente nos dois sentidos da palavra: dádiva e atual, que não dura para sempre.

Se não fossem os “ais
E não fosse a dor
E essa mania de lembrar de tudo feito um gravador

Foram as minhas quedas que atrasaram as minhas pernas e fizeram o processo da minha caminhada sobre a terra doloroso. Entretanto, como diria Clarice, se não fossem os danos, não seria eu. Foram exatamente essas quedas que me ensinaram como me balancear sobre a corda, e que até o mais severo machucado pode ser curado pelo Amor. É Deus quem nos acolhe e nos cuida, mesmo tendo sido Ele ferido por nós. Virá o momento em que perceberemos que somos nós os mais feridos pelas nossas escolhas pelo pecado. Somos nós que voltamos, despedaçados, aos braços do Pai. E é Ele quem, de novo e de novo, nos reconstrói e nos permite um novo começo. A nossa história dá testemunho do quanto somos amados por esse Pai. As minhas quedas me dizem que, mais uma vez, eu troquei a minha herança por migalhas do mundo. E que mais uma vez, fui curada por Aquele que, sem reservas, me amou.

Que as camadas abertas da minha pele sejam lavadas pelo sangue e água que brotam do Seu lado. Que ali eu me esconda como ácaro e me permita ser curada até no mais profundo do meu ser, na essência que somente Ele conhece, e que por Sua graça, pode se tornar o melhor em mim. Desejo não mais intervir na construção da história que Deus escreveu para mim, pessoalmente. Diga o mesmo para você.


Segue imagem para o Pinterest =)

  • Priscila
    agosto 24, 2019 at 6:41 am

    Nossa, parece até que fui eu que escrevi. Não porque o texto está bem escrito, mas porque eu já pensei muito assim e assim como você deixei de pensar porque eu não tive uma vida santa desde pequena e comecei a me preocupar em fazer dela santa apartir de agora. Também penso que se eu não tivesse tido todos esses danos, não seria eu e eu não ajudaria outras pessoas a supera-los também. Obrigada sempre por seu apostolado que tanto nos ajuda e obrigada pelo o seu sim.

  • SAMUEL
    agosto 24, 2019 at 10:18 am

    Que lindo!

    • Claudia Goliver
      agosto 24, 2019 at 8:03 pm

      Amo teus textos, aprendo tanto com o jeito que vc escreve, é tão claro simples objetivo e tem tanto coração. Obg Nath que Deus a abençoe e nossa senhora te cuide!

  • Ronicesa Aganete Silva
    agosto 24, 2019 at 1:05 pm

    Lindo texto Nathalia! Deus lhe abençoe sempre!

  • Mateus Machado Takamatsu
    agosto 24, 2019 at 1:36 pm

    Lindo mesmo! Faz refletir muito bem sobre o motivo de estarmos onde estamos e no momento em que estamos. Deus te abençoe, Nat, bom sábado!!

  • Pricila
    agosto 24, 2019 at 1:39 pm

    🙏🏾

  • Baptista
    agosto 24, 2019 at 2:17 pm

    Nossa que lindo. ♡

  • Jéssica
    agosto 24, 2019 at 6:06 pm

    Que texto lindo, Nah!💗

    • Maria C.
      agosto 28, 2019 at 10:19 pm

      As vezes quando penso nas minhas faltas e o quanto já feri Jesus e coloquei mais um espinho no coração de Nossa Senhora, penso como seria se sempre eu tivesse uma vida voltada a Deus, desde infância. Penso assim: “será que eu teria cometido os mesmos erros?” Mas como “O Bom Deus é bom”, Ele me chamou para dentro. Deus é muito misericordioso ❤
      Nah, bom texto e boa reflexão!

  • Andressa
    agosto 24, 2019 at 9:42 pm

    Muito bom😍

  • Iza
    agosto 27, 2019 at 8:47 pm

    Me identifiquei 100% com seu texto, me levou de volta à uma época muuuito difícil da minha vida. Eu amava as músicas da Clarice Falcão, costumava ouvir TODOS OS DIAS e Capitão Gancho era uma das minhas favoritas, conseguia cantava o final certinho e sentia orgulho disso, tão bobinha! Incrível como nossas perspectivas, gostos e preferências mudam quando escolhemos viver pela fé. Não estou dizendo que as músicas ou a artista sejam ruins, só não descrevem mais minha vida como eu costumava pensar que faziam há anos atrás. Graças à misericórdia e glória de Deus.

  • Vasco Vinícios
    setembro 29, 2019 at 6:48 pm

    Nath, que perfeita!! Suas palavras são lapidadas e as intenções por detrás delas são cristalinas. No decorrer da leitura senti-me imerso em cada acepção, que Fé, que linguagem, que escrita… perfeita!

  • Camila
    março 20, 2020 at 2:49 am

    Lindo texto ♡